não quero (re)lembrar (mesmo já relembrando) dos corpos, dos (m)ur(r)os, das mortes. essas são muitas, mais do que cabe no parágrafo, em números ou histórias. tentei, em vão, olhar para além do escuro que rodeava cidade e silêncios. um escuro que tomou conta do mundo, com uma ferocidade aquosa, líquida, argilosa. um escuro de noite marrom, não negra. um escuro quieto e vazio, pleno de água. esse escuro do silêncio mergulhado, dos buracos todos tomados por lama. esse escuro é mais do que se pode dizer: é mudo.

feito Príamo ou Aquiles, muitos procuravam seus entes para enterrar seus corpos. enterrar como, se a cidade inteira era água, lama, cuspida pelo rio, vomitada pelo mundo? não havia cova sólida em que se segurar. não havia chão para se pisar. num percurso líquido, nós, seres terrestres, esquecemos como andar. esquecemos e esquecemos tantas vezes, que muitas outras nos farão lembrar. e esquecemos outra vez. feito onda que engole e depois regurgita.

a dor da perda. a dor do medo. a dor do grito. do terror. do horror. a dor. é de dor que somos feitos. mesmo que sangue e água, e vida, e afetos, e sorrisos, e histórias. dor (também). e não é dor-ferida, dor-doença. é dor de vida: dor que se espalha onde antes era rua. onde antes era casa. que sobe pelas encostas e escala paredes. dor que gruda no peito e (talvez) um dia saia. ou não. mas feito rio, “tudo é rio”, vida é água: que sobe e desce. que engole, que arranca, que joga do outro lado do mundo, o que aqui um dia foi.

era. somos água. chegamos até o limite das nossas comportas e depois, vertemos: engolimos tudo. passada a fúria, aquietamos. água calma, sussurrante. água quieta que acaricia. e quando a água baixa, ali, os entulhos de tudo: que amamos e odiamos. que queríamos ou ainda queremos. que talvez nunca mais teremos. depois da água, a arqueologia dos dias, das noites. das dores (outra vez elas). feito especialistas em tempo (perdido), analisamos cada minuto, hora e século do que um dia foi. e vai. com a água, vai. fica um arcabouço de lembranças. de vidas esculpidas pela matéria líquida que, maleável, nos contorna, retorna, nos devora (também). ficam os veios do rio nas veias da carne. sim, somos água, em proporções não mensuráveis. do pó viemos ao pó voltaremos é palavra-vento. somos água: às vezes enchente, em outras, deserta(s). lama e tempo. água e mais água, dentro e fora. somos águas: doces e salgadas, misturam-se aqui e ali, do rosto ao resto do mundo. e parece que nunca mais seca. mas vai. e vem. água de cima, água do(s ) dentro(s), águas.

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