Sou uma cozinha colorida com cortina de corujas, véu que encobre o muito sol que insiste em entrar pelas janelas. Nas paredes habitam passarinhos, corações e azuis. Na cozinha que sou, os temperos brotam vivos de vasos ensolarados, de um verde só não mais verde, que os olhos de um amor. O manjericão perfuma pensamentos, a salsinha agitada discute com o estragão, e a alegria do alecrim contagia até mesmo a desanimada sálvia.

Meus armários de madeira pintada à muitas mãos, cada porta tem história: essa xícara eu ganhei num dia de inverno (quando o frio era mais frio, e o dentro era mais dentro), esse garfo era da minha avó (que me fez procurar em muitos dicionários o que significava dosséis), e essa bandeja eu não lembro não. A mesa tem toalha bordada de pontos e labirintos, e os pratos de cerâmica fui eu mesma que moldei e pintei: naqueles idos tempos em que, imitando deus, botei a mão no barro e dei forma às minhas fomes.

Eu-cozinha não pode faltar fruta amarela para alegrar olhos escuros, vermelhos tomates para aquecer o coração, e cheiro de alho e cebola para temperar a relação. Sal vai muito pouco (gosto mais do mar salgado e suas lonjuras), doçuras arrastam caravanas de formigas, e as panelas em ebulição, cozinham muito de simples paixão (são pequenos vulcões que coleciono assim, ao alcance da mão).

Nessa cozinha que sou, fui e serei, minhas taças de vinho são tintas, que pintam lábios, pele e tesão. Rego azeite de olivas longas sobre pães de outras estações: os queijos mais fortes sustentam portas e pisos, passos e preces, enquanto tudo que é defumado, me percorre de fresta em fresta.

Na bilha de barro, sôfrega, mato minha sede: de água, de saliva, de chuva caída.

Sou uma cozinha colorida cheia de fomes e vontades. Canecas e colheres dividem a parede com carinhos e sonhos futuros, chás e madressilvas. Em noites chuvosas e escuras, de cozinha viro biblioteca: levo minhas receitas comigo e não uso garfo e faca: como com as mãos.

2 comentários em “Meus espaços

  1. Encantador e mágico, você me fez viajar. Sinto o cheiro e o sabor, me sinto acolhido e saciado, não o saciar de sabores, mas da alegria na alma por ler tão lindas palavras que nos transporta.

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