Objetos diários me causam aflição. Dormi feliz e acordei louca, agônica e desamparada. O cheiro do cravo-da-índia me lançou no espaço das distâncias. O feno grego me arrancou o doce que eu guardava no canto ensombreado, onde o sol não crestava meus sonhos. O vinho embriagou a insana ideia que a noite trouxe: um fim. Mas no meio havia um tremor. Um sabor. Uma coisa não dita. E um silêncio pleno de aromas aterrorizantes. Foi assim que me senti ao fazer essa receita.

Para a experiência mitológica, você vai precisar:

* um exemplar da Ilíada (“Quando há banquete, sois vós os primeiros a ouvir meu convite”) porque não estarás sozinha nessa jornada: Homero sentará à beira do fogo e com sua voz em brasa, contará as aventuras de deuses e heróis, e de alguns mortais.

Ingredientes:

óleo de girassol (o óleo do deus Apolo) para refogar os legumes
1 cebola picada
dois nabos médios ralados de forma grosseira
um punhado de endro
100g de nozes picadas
duas espigas de milho debulhadas
um aipo cortado em tiras e repolho roxo desfolhado e rasgado
aproximadamente um litro de caldo de legumes
uma colher de chá de feno grego e uns 2 cravos-da-índia para perfumar.

Comece invocando todas as deusas e deuses que estiveram presentes na longa Guerra de Tróia, lembrando do amor de Páris e Helena, de Pátroclo e Aquiles, e das grandes muralhas da cidade atacada. Esta é uma receita para duas estações: outono ou inverno. Não aconselho em primaveras ou verões (quando a panela começar a ferver, você vai me dar razão).
Homero canta pela voz de Odisseu: “Não há ninguém que consiga, em jejum, prosseguir na batalha”, ainda mais em guerras em que deuses tomam seus partidos e fornecem armas a seu bel prazer, traçando os destinos de heróis e mortais conforme a sua diversão, ira ou paixão.
Depois que você conseguir folhear alguns cantos (aleatórios ou em sequência), vá para perto do fogo:
Aqueça o óleo de girassol, refogue a cebola (relembre que o arrebatamento de Páris por Helena foi cena regida por Afrodite) – é a vez do cravo e do feno grego entrarem na panela e perfumar a cozinha (Hera estará presente). Depois acrescente o aipo, o nabo, o milho, as nozes e o caldo de legumes (é nesse momento que as guerras adentram à cozinha). Deixe ferver até o conjunto estar macio (percorra as muralhas de Tróia, com Heitor e Príamo a perder de vista o olhar na cidade sitiada). Sim, esta é uma receita de homens, de guerras desencadeadas por brios masculinos, mas ainda assim, uma receita em que as deusas Afrodite, Atena, Hera e Ártemis, são soberanas. Por último, acrescente o repolho e deixe mais alguns minutos, até que o ensopado esteja tingido (das cores intensas das batalhas). Sente-se à mesa, com um pão rústico que possa ser partido e não fatiado, e se quiser, acrescente um iogurte: sua acidez cairá muito bem com o caldo encorpado. Ao longe, bem distante, os ecos de aventuras homéricas nos lembram que entre as deusas e heróis, existimos nós, mortais, cheios de fome e sede.
Para beber, o ideal é o tinto grego da uva Agiorgitiko, da região de Neméia (ou Nemea), conhecido como “sangue de Hércules”: aveludado para contrastar com Homero e o paladar intenso do Ghiuvetch. Ou ainda, da mesma região do Peloponeso, o vinho de mesa Katoi, mais rústico e integrado às batalhas.
Yamas!

Um comentário em “Ghiuvetch – Cozinha mitológica (Grécia)

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