Dia 1

Nunca assisti Masterchef ou qualquer programa de culinária. Não tenho paciência para essas competições áridas e cheias de ego. Mas sempre li muito sobre gastronomia. “Sangue, ossos e manteiga” me marcou muito: uma pitada de realidade para aquilo que todos acreditam ser só poesia, um prato bem preparado, apresentado em cerâmicas lindas, com decoração impecável e cheio de descrições que mais parecem anais da cozinha medieval.
Quando cansei do mundo teórico, decidi cursar gastronomia, afinal, sempre gostei muito de cozinhar. Mas cozinhar em casa é essa mistura de Norah Jones rodando entre os pés descalços no piso da cozinha.
A experiência real, de uma cozinha real, essa eu desconhecia.
Meu primeiro dia foi no primeiro sábado de novembro deste ano. A estrada que me separa do restaurante, quase vinte quilômetros de buracos (não somos todos esses buracos e vazios?) , recheada de caminhões estressados, me questiona: que sabor é esse, na ponta da língua, esse faiscar no espelho, misto de velocidade e (in)delicadeza? Que estrada é essa, que vamos e não sabemos quando? Nessa manhã quente, saio de casa com uniforme, máscara, e jogo de facas, em busca desse sabor que se espalha pela boca e chega ao corpo, da estrada para a vida.
E chego num restaurante silencioso, com abelhas dançantes entre os verdes da entrada. A manhã ainda espreguiça quando começa a chegar a equipe: trocas de roupas, conferência de materiais, e a cozinha estremece ligeiramente, como se despertasse de um longo sono. Fogo aceso, panela com água quente, menu do dia fixado na parede, bancadas que começam a serem habitadas por ingredientes, pessoas e afetos. Sim, afetos. Somos afetados por tudo que nos cerca: calor, sons, cheiros, rumores (humores também).
Eu, no meu primeiro dia de toda vida, não sei bem onde fico, o que faço, até que me dizem: vai fazer vinagrete. Ok. Pego minha faca, cebolas, tomates e temperos e começo a picar. Picar como se não houvesse amanhã. Picar com receio de dedos e fios, picar com a insegurança da primeira vez, como se isso nunca tivesse sido feito antes (e não foi: não por mim, não assim, para que desconhecidos comam!). Picar e picar, tão nervoso picar, que por pouco não reduzo aos mínimos pedaços, a minha própria existência. Eis que um dos chefs chega para mim e diz: da próxima vez, muito menor. Mas MUITO menor, mesmo. Ok, vocalizei, pensando em como fazer para da próxima vez ser MUITO menor (minha ínfima parte ali, aqui, entre escombros de cebolas e tomates).
Minha próxima tarefa foi fazer bolinhos de aipim: diversos recheios (veggie, vegano, “normal”). Perdi a conta, foram muitos. E fomos transferidas, eu e minha colega, para o estoque, para “não atrapalhar” o andamento das coisas na cozinha. Voltamos no fim do expediente, para ajudar na limpeza, recolher lixos. Lavar a alma entre aquelas louças todas, limpar a ideia crua de que estamos prontos.
Fim do primeiro dia: não, não há poesia numa cozinha real. Só mãos machucadas, pés e costas doendo. E uma leve sensação de que não fiz nada certo. Lembrei de Clarice (“ter nascido me estragou a saúde”). Sim, dramática. Mas não há cozinha real sem drama: sem atrito, não há fogo.

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